Candida voltou a tocar o instrumento enquanto espera o marido, que faz hemodiálise no prédio ao lado
Por: Jéssica Rebeca Weber
Candida posiciona os dedos sobre as teclas do piano e se reconcilia com o velho amigo, após mais de 50 anos. Toca algumas notas de Für Elise, uma das peças mais conhecidas de Beethoven, erra e começa tudo de novo, duas vezes.
No instrumento, Candida Maria Claus Adornes, 77 anos, é mais enérgica do que aparenta com seu sorriso terno, cabelos curtos, sutilmente ondulados e 1m50cm de altura — "pelo menos era isso, mas posso ter diminuído", alerta ela, bem-humorada. Também é exigente consigo. Muito mais do que foi com os seus alunos do primário. Era daquelas professoras que botavam no colo para ensinar.
— Quando eu erro, volto e repito. Tem gente que desiste quando tropeça, mas é daí, sim, que eu vou em frente — afirma.
No piano colocado à disposição da comunidade no Centro Histórico-Cultural da Santa Casa, a aposentada sente novamente o "sabor muito gostoso" de aprender. E usa a música para limpar a mente, renovar-se, aumentando a disposição para cuidar do marido, que, naquele momento, faz hemodiálise no prédio ao lado.
Desde o ano passado, José João Adornes, 91 anos, sofre de problemas renais e, atualmente, encara sessões de três horas do tratamento, três vezes por semana. Orientada a não permanecer na sala, Candida leva José até a porta e parte para sua própria terapia.
— Quando estou ligada na música, eu esqueço certas vicissitudes da vida, certos problemas, certas angústias que tensionam a gente. Eu adquiro forças e fico com o espírito mais leve para tratar dele — confidencia.
A aposentada toca Serenata, de Schubert, Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, além de Valsa do Adeus, de Chopin. O interesse pelo instrumento e pelos clássicos começou cedo, aos nove anos de idade. Aos 15, ganhou um piano do pai, dono de um armazém de secos e molhados em Uruguaiana e amante de música. Foi naquele instrumento que tocou para José no final dos anos 1950, quando o relacionamento alcançou a permissão para visitas em casa.
O presente veio com a mala para a Capital na década seguinte. Mas os filhos, a carreira e uma Porto Alegre mais movimentada do que sua cidade natal fizeram com que Candida se afastasse da arte. Isso até dois meses atrás, quando descobriu o piano do Centro Histórico-Cultural e procurou uma professora particular. Para voltar a praticar, comprou novos exemplares dos mesmos livros que usou na juventude.
Enquanto toca, ela atrai olhares e ouvidos curiosos. A estudante Raquel Magnus dos Santos, 28 anos, já havia observado Candida outras vezes e, na metade do mês, resolveu chegar mais perto para conversar. Sua mãe estava internada havia mais ou menos 20 dias, e diz que em um ambiente triste como um hospital, o instrumento tem “grande valia”.
— Eu amei vê-la tocando. A música tira a gente daquele aperto, de todo o sofrimento que a gente vem vivenciando — diz.
Candida afirma que é comum as pessoas em situações semelhantes a dela se aproximarem para conversar.
— Muitas vezes as pessoas chegam, compartilham o que estão passando — conta.
A aposentada consulta o relógio de pulso com frequência. Quando marca 15h30min, apressa o passo em direção ao Hospital Santa Clara. Espia pela porta da sala de hemodiálise, buscando não chamar atenção, mas, mesmo assim, José a nota. Abre os olhos, sorri e acena. Ele sempre incentivou a mulher a voltar a ensaiar e comemorou quando ela retomou as aulas:
— Ah, fiquei muito contente. Assim como ela gostava, eu também gostava.
Seu José ainda não ouviu a Candida de 77 anos tocar. Sua lembrança é a da menina de Uruguaiana. Mas assim que estiver "mais fortinho", deve acompanhá-la ao piano da Santa Casa. Se depender dos cuidados da mulher, não vai demorar.
— Enquanto eu tiver forças, vou cuidar dele — Candida promete.
Fonte: ZH
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