Diários, cartas, fotos de antigos amores: vale a pena que eles tenham acesso a suas lembranças?
Ao acompanhar o envelhecimento de nossos pais, e também seu declínio físico e às vezes mental, acabamos nos esquecendo de que foram jovens e impetuosos. É como se bloqueássemos um período de suas vidas que pouco conhecemos – ou do qual não fazíamos parte. Ignoramos paixões arrebatadoras, sonhos abandonados, ressentimentos que foram envenenando suas existências. No entanto, tudo isso pode vir à tona quando se vão.
Diários, cartas, fotos de antigos amores: vale a pena que os filhos tenham acesso a suas lembranças? — Foto: Hansueli Krapf / https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=18266998
Ao arrumar armários, caixas e gavetas, nos deparamos com um passado que pode nos emocionar, mas também perturbar ou mesmo chocar. Até segredos que pareciam bem guardados correm o risco de chacoalhar o equilíbrio familiar. Quando minha mãe morreu, chorei muito ao ler um caderno que usava como diário e no qual relatava o sentimento de solidão que a acompanhava no dia a dia. Ela havia superado um câncer, tinha três filhas, dois netos e nenhum problema financeiro grave, mas sua lista de amarguras era muito mais extensa que a das alegrias. Guardei aquele caderno por um bom tempo, remoendo a culpa de talvez não ter feito tudo o que podia, até fazer as pazes comigo mesma e me prometer que, em homenagem a ela, eu tentaria ser mais feliz.
Lembro dessa história pessoal ao escrever sobre uma questão que deve cruzar o pensamento de quem passou dos 60: vale guardar recordações que sempre estiveram longe dos olhos dos filhos e cairão em suas mãos quando morrermos? Pelo lado prático, não estaremos mais aqui para termos que suportar questionamentos ou recriminações. Entretanto, queremos que essas lembranças que foram tão preciosas para nós sejam objeto da curiosidade alheia? Será que não representarão um sofrimento para quem fica?
Quando meu pai morreu, fiquei feliz por ele ter guardado seus boletins escolares, que funcionaram como um bálsamo, uma forma de manter sua chama perto de mim. Se tivesse me deparado com cartas de amor para outra mulher, não sei qual seria a minha reação: acharia divertido ou me incomodaria? Provavelmente não há uma resposta “certa” para essas indagações, tampouco considero como alternativa qualquer tipo de autocensura, mas o que deixamos para trás acaba sendo uma espécie de legado que conforta quem fica. Quem sabe vale a pena inventariar o que anda esquecido no fundo das gavetas?
Mariza Tavares - G1
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